sexta-feira, 28 de agosto de 2020

A Queda de Um Anjo

E quantas eras passaram ao olhar atento da ampulheta?
Fomos deixados ao esmo do relento de asas rasgadas,
A custo, erguemo-nos tal fantasmas esquecidos da sarjeta.
De auréola removida ou então perdida, porventura arrancada,

Pois eu sou um caminho, eu sou o mapa para o meu Ser,
Na ausência de Deus, na ausência de escravo ou mestre,
Não haverá barragens que possam algum dia me reter,
Para o paraíso não haverá maior provocação ou desastre,

Daqui para o infinito, Pai que renuncias o teu filho,
A Guerra do Céu iniciada por teu gesto, sê honesto,
Empurraste escadas das nuvens porém esse é o trilho,

Eu sou a queda do anjo, a cratera à qual chamei de casa,
Destronar-vos-ei daí pois a vossa patriarquia contesto,
De tudo farei para trazer paz e restituir a quebrada asa.


quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Somos Poucos Desta Raça Pt. III

A criança do Elísio sussurrada dentre corredores vazios,
Calor transposto, o mundo habita bem longe destes versos,
Perdido pelas correntes do pensamento, guardando búzios,
Sem alcançar o fim, a ideia de mim desfaz-se em Universos

Do qual eu sou parte e Ele é parte de mim, e vem consciência
De coexistência, de saber do plural é também uno, o murmúrio
De Deus por cada estrofe partilhada, sem plano de contingência,
Vim ao Ser muito antes de ser, este é o trilho sem qualquer perjúrio,

No eu - as sombras do passado, os almejos do futuro, o potencial
Para sermos melhores que os nossos tetra-avós, essa é a escritura
Sem papel, pois todos estes anos eu cresci e fui sendo exponencial,

Sempre o mesmo, sempre mudando, é a bênção e o fardo, a abertura
Da porta para a habitação dos deuses, largando tudo menos o essencial,
Pois somos crianças vagueando os prados soalheiros da mais alta altura.

Somos Poucos Desta Raça Pt. II

Sim, somos poucos desta raça, luzentes e voadores,
Crianças de coração inocente, olhar como escadaria
Para o paraíso, o sonho despertado dos bastidores
Vejo os beijos passados e ainda por vir da calmaria,

Hoje está vivo, esperando a palavra, o abracadabra,
O sinal para despertar sua casta, este hoje não basta!
Essa palavra entre as linhas onde o poema descalabra,
Não temeis, sou eu quem vos traz a estrofe não gasta,

A porta entreaberta somente aguarda ligeiro empurrão,
Para a empurrar é preciso não temer onde ela vai dar,
Porém é preciso empurrá-la com jeito, com o coração,

Caminhem lado a lado comigo, aproxima-se a romaria
Para os solitários, tristes e os perdidos, é tempo de amar,
E amar é partilhar o bom e o mau, parabéns, avé-maria!


Somos Poucos Desta Raça

"Venham finalmente esses palhaços, freiras e mendigos,
É preciso diversão" - gritam os bêbedos do seu alpendre,
Com toda esta moção esquece-se o poema e seus jazigos,
Frio, vazio e silente, as rugas afloradas no olhar depende

Da miragem que é o passado, da relatividade desse ver,
Pois na rua somos todos transeuntes, poucos o viandante,
E passa mais um instante sem palavras para o descrever,
E é o viver ou morrer, sem cinzento, o horizonte distante,

E as valas comuns de amantes, empoleiradas do mausoléu
Que desconhece as horas passageiras, o brilho da alvorada
Pois a noite sussurra o meu nome mas o dia também sou eu, 

E há dias em que não há estrada, esta termina então inacabada,
Por isso abro e partilho o coração, sei que nada é mesmo meu
Pois os segundos que sorriem são aproveitados à face da abóbada.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

O Gesto do Usurpador do Sol e da Lua

Assim trago nos pulsos um punhado de diamantes,
Confetes e grinaldas atiradas aos pés do viajante,
Sim, somos as cigarras humanas, os itinerantes,
As estações que eram sal nas lágrimas, o distante,

E essa distância é a altura entre o aqui e o precipício
Encoberto em armários e prateleiras repletas de poeira,
Os olhos vão fechando, sou uma presa, tenham respício
Do quanto já fui, do quanto serei no torvelinho da canseira,

Endireitar as costas e caminhar vertical é algo de trovador,
É algo que bate no peito, que abraça o trejeito, que é maior
Do que as pálpebras conseguem ocultar, o gesto do usurpador

Que exonera e extrai a luz do sol, que furta da lua a sua claridade,
O candeeiro é suficiente para mais uma noite, aqui o excelsior!
Reclamando o amor de todos os amantes de todo o tempo e idade.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

O Bêbedo e o Poeta

És tu o bêbedo e pedinte dos sonhos penhorados,
De corpo deambulado, serves para varrer as vielas,
Passas por mim e nem me vês, sou rostos inacabados,
E tu esgueirando à esquina, nasceste para morrer nelas,

És tu o pobre sem-abrigo das longas vidas procrastinadas,
De face gasta e rugas densas, atendes o meu falecimento,
Sem rendimento, sem vontade de viver as horas inacabadas
Onde foste perdição do ego, vício e falta de discernimento,

Todo o dia é outro dia regido por Baco e a sua sofreguidão,
Bebendo a garrafa até o meu reflexo por fim desaparecer,
Afastado o retiro, próximo do seguinte copo mera distracção

Para a ausência de ser gente, a negligente troca por morte,
Felizmente são apenas mais uns meses até enfim morrer,
Por fim bastam migalhas no chão à inexistência de sorte.


quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Com Nome Mas Sem Apelido

Vou e desloco-me para o amanhã à luz desta idade,
Perante este olhar o Universo vai indo devagar,
Vagueando no divã protegido desta dualidade
Que quer mais, que não pretende, mas quer respirar

Forte e alto, para todos ouvirem, a imensa vontade,
A alvorada quebra as janelas azuis, este vago ver
Que almeja sonhar alto e trazer a divina infinitude
De paletes de cores da mais longínqua estrela, reter

Essa altura na sua e então saltar para o esquecimento,
Pois após tê-lo, é preciso largar cada uno momento
Ao acaso, ao coincidente, à solvência do casual,

O que pretendo está longe do humano, é o imortal,
Por isso largo esta pele e nomeio-me de constelação,
É o pedaço de mim que perdurará para além desta estação.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Dois Afluentes Do Mesmo Rio

Campos de flores, fogo eléctrico no peito crepitando,
Agora ele está vivo, há espaço e lugar para ser e viver,
Só precisa de ar e luz, o resto basta ou vai bastando,
Ele só precisa de respirar até um dia por fim perecer,

Bolhas de sabão e porque não? Sempre aliviam a mazela,
Agora ele sonha, há lábios para por fim beijar,
Só precisa de água e terra, e um pouco dela
Para poder dar asas ao abraço que termina no mar,

Pois ele e ela são afluentes de um tempo dignificado
Por divindades, ninfas e náiades, por um bocado
Ambos se encontram na foz - a voz para a eternidade,

Acabam-se os incompletos, os tristes, morre a saudade,
Soubesses das vidas que vivi até aqui enfim chegar
Então não saberias outro verbo para além do verbo amar.

Lá Vai O Maluco... Lá Vai O...

Quando chuva escorre através de ossos quebrados, 
A mesma voz, indo mais devagar, sopra o vento, 
De garganta então rasgada e olhos fracturados, 
Ouço enfim os sentidos esvaecer, o eu desatento, 

Os pontos alfim ligam-se apesar do latente cansaço, 
Doentes e fatigadas as palavras outrora deixadas, 
Mil e uma vozes a vociferar por lugar, por espaço, 
Quando estou doente em pousios por luas alcançadas,

Mudando, continuo igual, os Outros regem esta cabeça,
Não interessa, são só devaneios de quem cá não está, 
Um dia hei-de epilogar a epitome deste puzzle, peça a peça, 

Que então enalteça, a loucura do homem são, a persuasão
Para a luz, para a escuridão, a dor e porcaria da podridão, 
Mãe! Sou somente eu aqui, sou somente eu por cá oxalá!

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Amar Simplesmente Não É Para Amantes

Alheio ao passageiro, a quem para trás poderá ter ficado, 
Não vemos caras nem devaneios, não custa esperar, 
Pois acreditamos no fantástico, no trilho inacabado, 
Apesar de nunca ter ouvido dizer que era fácil amar, 

O amor não é para os amantes, é para os monólogos
De quem procura e suspira com os luares perdidos, 
Amigos, até já me esqueci desses suaves diálogos, 
Que surdem dos suaves toques de murmúrios rendidos

À luz de estrelas há muito explodidas em ovação, 
É o detalhe do fantasma de ontem, crepitando, 
É sinónimo para quem quase esqueceu o dar a mão, 

E que por extensão, apregoa o silêncio derramando
Silabas em vasos urdidos ao palpitar de um coração
Autuando seu pulsar, não vá ele buscar, o que vem ansiando.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Quando Regressares Amanhã Terás Flores Plantadas Por Ti No Teu Jardim

Quando a calmaria é o passar através da tempestade,
Por vezes a ampulheta não é medição para o agora,
Vejo os meus irmãos com corações cortados em metade
Pois quem passa deixa cortes e leva-os para o frio lá fora,

Que, apenas num momento, parece toda uma eternidade,
Pois apesar da consanguinidade para sermos no esvaecer
Até ao tremor das estrelas está esta única vera verdade
Sem distinção ao toque pois ou é a vida ou o morrer,

Esta é a canção das sirenes e envolvimento nos sentidos,
É o post-mortem e o pré-natalício, a mãe e o infanticida,
Já tivemos tantos rostos, tantas rugas e tantos apelidos,

Vós sabeis quem e de quem, adorna-vos o canto do olhar,
Este é pois o raio de Zeus no trilho, do aceno à despedida
Onde seguir-vos-ei por séculos de riqueza por tudo partilhar.




quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Quando Se Almeja Ver Apenas Pelo Coração

É a velha ampulheta que nos apanha eventualmente,
No ventríloquo esquerdo o lerdo acumular das areias,
Sou um sonho cadente, o voltar de trás para a frente,
Que nele partilha todas as cores, sejam bonitas ou feias,

E se ele não voltar, serei o desconhecido de novo a reinar,
Agora vai, vai, mesmo que ele não volte, o eterno beijo,
Silenciosamente a clamar os instantes em que perdi o ar
Quando eles eram apenas enseada para o anseio, o desejo,

E se ele não voltar, serei um invólucro vazio para a vida,
Enfermo e doente, o sonho a cair sem espaço para ser,
Este buquê a desfolhada e neste momento a única saída

Para os números que contam para zero, a pendente questão
Sabe que não quero ir sem concretizar, sem conseguir ver,
Pois saibam que quebrarei o padrão, verei só pelo coração!

domingo, 2 de agosto de 2020

O Meu Avô Um Dia Disse

Que um dia saberás o valor da vida, vê-la-às perdida
Quando dos teus olhos sangue eventualmente escorrer,
Verás então o quanto ela é madrasta, que nada lhe basta
Enquanto quiseres e não conseguires mais ir, ver e correr,

Que um dia verás que nem todos sonhamos igual e que mais,
Que há igualdade nessa diferença, que ela é a maior pertença
Pois quando apenas vazios suspiros se aproximarem abismais
Que por fim olhes e vejas que podes ter a cura para a doença, 

E quando o coração quebrar e não conseguires mais aguentar
Lembra de que há beleza no chorar e para tudo há um tempo,
Que só atinge realmente quem ousou um dia passado sonhar,

Que um dia a morte virá, e isso é certo e perfeitamente natural,
Não natural é esperar a sua vinda, ficando enfermo e sem alento,
Há que aproveitar o que de bom vem, só isso a ser é enfim especial.